Dado, informação, conhecimento e competência

Valdemar W. Setzer
Depto. de Ciência da Computação da USP – www.ime.usp.br/~vwsetzer

(Publicado no jornal do Grupo Folha Folha Educação No. 27, out./nov. 2004, pp. 6 e 7)

Introdução

Antes de ler este breve artigo, o leitor deveria tentar responder as seguintes perguntas. O que é informação? Existe alguma diferença entre dado e informação? E entre informação e conhecimento? O que é ser competente em alguma atividade? Com certeza os leitores terão muita dificuldade em responder essas perguntas e distinguir entre os vários conceitos. A confusão entre eles já levou muitas empresas a terem grandes gastos inúteis, por exemplo armazenando um monte de dados achando que estavam armazenando informação ou conhecimento (isso é possível?); do ponto de vista educacional, a sua conceituação clara leva a uma visão de mundo que distingue o ser humano da máquina, o que considero essencial para que se trate o primeiro com dignidade.

Dado

Defino dado como uma representação simbólica (isto é, por meio de símbolos) quantificada ou quantificável. Assim, um texto é um dado, pois as nossas letras formam um sistema numérico discreto (de base 26, o número delas), e portanto quantificado. Mas uma foto também é um dado, pois é possível quantificá-la reduzindo-a a símbolos – pode-se digitalizá-la em um scanner e armazená-la em um computador, imprimindo-a posteriormente de modo que praticamente não se a distinga do original. Cada elemento da foto armazenado no computador – o que se denomina de pixel –, é um símbolo quantificado: uma combinação de 3 números entre 0 e 255, correspondentes às intensidades das cores vermelha, verde e azul escuro na tela, que leva à ilusão óptica da cor desejada. Assim, uma foto de uma árvore é um dado (ou uma matriz de dados). Mas é fundamental entender-se que uma árvore do mundo real não é um dado. Para simplificar, vamos considerar essa existência no mundo real de maneira ingênua; conheço muito bem as objeções a isso, por exemplo as kantianas. Conjeturo que nunca será possível quantificar um ser vivo sem que se perca algo essencial do ser. No caso da árvore, ela não é apenas a sua forma exterior, incluindo suas folhas, flores e frutos, mas também todos os seus processos vitais, incluindo o crescimento, a regeneração e a reprodução, além do modelo (isto é, uma idéia) com as formas e processos próprios de sua espécie (para os que acharem – erradamente – que o modelo está no DNA, recomendo a leitura de meu artigo "Desmistificação da onda do DNA", em meu site).

Informação

Consideremos inicialmente as informações que são mensagens recebidas sob forma de dados. Uma mensagem dessas torna-se informação se o seu receptor consegue compreender o seu conteúdo, isto é, associar a ela, mentalmente, um significado. Assim, se essa mensagem não for compreensível (por exemplo, escrita ou falada em uma língua desconhecida), ela não será uma informação, mas simples dados. Note-se que essa é uma caracterização, e não uma definição, pois estou considerando aqui uma acepção ingênua de "compreender" e "significado"; vou elaborar esses conceitos mais adiante. Um exemplo é uma tabela de nomes de cidades do mundo e temperaturas máxima e mínima ocorridas no dia anterior, como essas publicadas diariamente em alguns jornais. Essa tabela, que consiste de simples dados, é interpretada por um leitor como contendo uma porção de informações, pois ele é capaz de associar o nome de cada cidade com o conceito que faz dela, os graus de temperatura com o conceito que ele tem de frio ou calor, etc. Se essa tabela, com seus títulos e nomes de cidades, fosse vista por alguém que não conhece a língua em que foi escrita, e ainda em caracteres desconhecidos, como os ideogramas orientais para um ocidental, ela seria simplesmente um amontoado de dados. Eles poderiam ser reproduzidos, formatados, ordenados pelos nomes das cidades (dada uma seqüência alfabética das letras) ou pelos números representativos das temperaturas. Esses são processamentos típicos de dados.

Vejamos o caso de informação recebida sem ser em forma de texto. A extensão para figuras, som e animação é imediata. Uma figura contém informação se ela é compreensível, isto é, ao vê-la o receptor pode associar conceitos aos seus elementos. Por exemplo, vendo uma foto de uma árvore logo associamos a ela o conceito "árvore", talvez ainda outros conceitos como a sua espécie, se está florida, etc. É interessante observar o que ocorre com algumas figuras que provocam ilusão de óptica, as quais contêm várias formas diferentes que não são vistas até que se associe a cada uma o seu respectivo conceito. Um caso muito conhecido é o do vaso branco em fundo preto que pode ser interpretado como representando duas faces pretas que se olham. Há pessoas que imediatamente vêem as duas faces, outras o vaso; ambas precisam fazer um esforço mental para enxergar a outra forma. No entanto, depois de vista, esta última torna-se tão clara quanto a inicial, e é um exercício fascinante enxergar uma forma em seguida àoutra, alternadamente. Nota-se perfeitamente que é necessário trabalhar com o pensamento nesse processo, pensando-se "agora vou ver o vaso; agora vou ver os rostos". Assim, uma percepção sensorial só produz algo em nossa mente se conseguirmos associar conceitos a ela, usando para isso nosso pensamento. Pessoas cegas de nascença que são operadas simplesmente enxergam, por muito tempo, apenas manchas luminosas, o que em geral provoca nelas enorme frustração. Elas não aprenderam a associar a percepção visual aos conceitos dos objetos percebidos. Em termos do que foi exposto, pode-se dizer que uma pessoa assim só vê dados, e não informação.

Segundo essa caracterização, informações podem ser obtidas sem que sejam transmitidas sob forma de dados. Por exemplo, saindo de casa, uma pessoa pode sentir se está calor ou frio lá fora. Nesta conceituação, ela não obteve dados sobre a temperatura – o que teria acontecido se tivesse lido um termômetro – pois as percepções corporais de temperatura não são representações simbólicas. Ela obteve uma informação. No entanto, ao contar a outra pessoa a sua impressão, não estará transmitindo informação, mas dados – as palavras faladas, que podem ser quantificadas e armazenadas como som ou texto. Essa outra pessoa absorve-os, e os transforma interiormente em informação. Do mesmo modo, ao sentir uma dor em algum órgão interno, obtemos informação que também não é transmitida sob forma de dados.

Não é possível processar informações em computadores. O que se processam são os dados que representam essas informações. O ser humano é capaz de elaborar informações, por meio de associações de conceitos. Jamais se deveria dizer que um ser humano processa informações: devemos deixar essa palavra para expressar o que fazem os computadores com os dados. Isso por que não se sabe como o ser humano associa fisicamente conceitos (conjeturo, por experiência pessoal, que essa associação nem seja física); no entanto, sabe-se exatamente como um computador processa dados. Vamos deixar ao computador o que é do computador, e ao ser humano o que é do ser humano, como já disse Norbert Wiener, o introdutor da cibernética. Uma confusão nesse âmbito é extremamente perigosa, em particular do ponto de vista educacional, pois pode induzir a idéia, absolutamente anti-científica, de que os seres humanos são máquinas ou que os computadores agem como seres humanos. O perigo está no fato de não se poder ter moral em nosso relacionamento com as máquinas: é uma aberração ter dó de desligar uma máquina ou de deixar de dar-lhe manutenção. Obviamente, uma máquina pode ser usada de maneira moral ou imoral, dependendo do uso que se faz dela em relação à natureza e aos seres humanos. Os computadores e máquinas controladas por eles podem até imitar razoavelmente certas funções humanas, como pegar um ovo atirado no ar ou jogar xadrez, mas é absolutamente certo que eles não o fazem como nós o fazemos. No caso humano, qualquer processo interior envolve fatores que jamais (minha conjetura) poderão ser introduzidos em uma máquina, como os psicológicos e os psíquicos.

Compreensão e significado dependem da capacidade de pensar, isto é, de associar percepções e certos conceitos a outros conceitos. Nunca ninguém viu uma circunferência perfeita: esse é um conceito puro, como o são todos os conceitos matemáticos. Pode-se supor que os conceitos estão no mundo platônico das idéias, isto é, não existem fisicamente. No entanto, vendo uma forma redonda regular, como a borda de um copo, logo associa-se essa forma a uma circunferência, apesar de ela não ter rigorosamente essa forma. Associar percepções a elementos desse mundo não-físico por meio do pensar é o que denomino dar significado ou compreender, processos essenciais na absorção de informações e na cognição.

Portanto, tomar um dado como uma informação depende de um ser humano que o recebe e que o interpreta, associando-o a um conceito conhecido. A tabela de temperaturas citada é uma coleção de dados, podendo tornar-se uma coleção de informações se quem a recebe tem compreensão do seu conteúdo.

Como foi dito, o computador só trata dados, como o do exemplo da tabela incompreensível, sendo incapaz de associar significados a eles. Assim, é válido chamar essa máquina de "armazenador e processador de dados"; é inválido chamá-la de "armazenador e processador de informações". De fato, o computador não compreende absolutamente nada. O computador é uma máquina puramente sintática, pois as relações entre dados é sempre feita de maneira estrutural, por exemplo por contigüidade física dentro do dispositivo de armazenamento ou por meio dos chamados "ponteiros". Um dado "aponta" para outro se ao lado do primeiro colocar-se o endereço (o ponteiro) do segundo, indicando onde o último está armazenado. As instruções de um computador também são puramente sintáticas. Um computador pode ser programado para reconhecer padrões, como por exemplo a escrita manual cursiva. Mas isso é feito de maneira puramente matemática, com uma quantidade tão enorme de cálculos que deveria provocar profunda admiração pelo ser humano que, parece-me, obviamente não calcula quando lê. Ao lermos, estamos continuamente associando conceitos para reconhecer letras, fonemas e palavras, e muito mais ainda para compreender uma frase, um parágrafo e um capítulo.

É importante enfatizar que, de acordo com o que foi exposto, dados são entes meramente sintáticos – os símbolos em que estão representados são organizados estruturalmente, isto é, sintaticamente. Informação, por outro lado, deve necessariamente conter semântica.

Dados são puramente objetivos, podendo ser descritos matematicamente. Informações são objetivas-subjetivas: quando são transmitidas por meio de dados, existem objetivamente (como por exemplo um texto, uma foto, uma fita gravada). A transmissão de informações sem dados também pode ser feita objetivamente (usando o exemplo anterior, qualquer pessoa entra em contato com o mesmo ar, para ver se está quente ou frio). No entanto, o significado que lhes é atribuído depende de cada receptor humano. Aqui ocorre algo muito especial: por trás dessa subjetividade da interpretação particular dada por uma certa pessoa, pode existir um conceito universal, o que ocorre na maior parte das vivências. Todas as pessoas sadias e com suficiente conhecimento, ao se defrontarem com uma porta fechada, reconhecem que se trata de uma porta, passando eventualmente a abri-la. Portanto, o conceito é também objetivo apesar de, além da subjetividade da interpretação, o pensamento empregado nesse processo depender da pessoa e não poder ser vivenciado por outra.

Conhecimento

Caracterizo que alguém tem conhecimento quando pode efetuar associações de conceitos baseadas em uma vivência pessoal dos objetos envolvidos. Pode-se ler bastante sobre Paris, obtendo-se assim, nessa caracterização, informações sobre essa cidade. Mas conhecimento sobre ela só se obterá visitando-a pessoalmente. Conhecimento é, portanto, totalmente subjetivo (cada um tem uma vivência diferente), e envolve pragmática. Nessa conceituação, é impossível transmitir conhecimentos. Recordando, em geral o que se transmitem são dados, que podem eventualmente ser incorporados como informações – e não como conhecimentos – pelo seu receptor. Voltando ao exemplo da temperatura do ar fora de casa, a primeira pessoa, ao sair dela para experimentar qualitativamente a temperatura, teve uma vivência. Portanto, ela adquiriu um conhecimento da temperatura do ar exterior. Quando ela volta à casa e conta a uma outra pessoa se está frio ou quente lá fora; essa outra pessoa obteve uma informação.

Para resolver a questão de conhecimento de áreas puramente intelectuais, como a história, em que não é possível ter vivências das coisas passadas há centenas de anos, considero que existe uma memória universal. O historiador, ao se embrenhar profundamente no estudo dos fatos passados, entra em contato com essa memória, adquirindo por meio dela uma vivência conceitual daqueles fatos. Não vou alongar-me nisso por falta de espaço. Do ponto de vista de áreas técnicas, essa caracterização de conhecimento como exigindo uma vivência prática da realidade funciona perfeitamente.

Competência

Finalmente, entendo como competência uma capacidade já demonstrada de produzir algo, em particular socialmente útil. Uma pessoa pode ter muita informação e conhecimento de Paris, mas não pode dizer que é um guia competente nessa cidade, se não puder mostrar como já serviu de guia na mesma. A competência envolve uma ação física (e não simplesmente uma sintaxe, uma semântica ou uma pragmática como nos outros conceitos), e é subjetiva-objetiva: ela existe interiormente em uma pessoa, é sua propriedade exclusiva, mas a produção de algo a partir dela pode ser vista por qualquer um. É interessante notar que uma competência sempre envolve uma certa habilidade sobre uma determinada área de conhecimento, por exemplo, a habilidade de traduzir textos de uma dada língua estrangeira.


Este artigo foi baseado em trecho do cap. 1 do meu novo livro sobre Bancos de Dados, a sair brevemente pela Ed. Edgard Blücher; para maiores detalhes, leia-se o artigo completo correspondente em Setzer, V. W. Meios Eletrônicos e Educação: uma visão alternativa, São Paulo: Ed. Escrituras, 2a. ed. 2002.