UMA INTRODUÇÃO ANTROPOSÓFICA À CONSTITUIÇÃO HUMANA

Valdemar W.Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original de 4/2000; versão 4.4 de 14/2/21; see also the English version


Parte 1/ 3 – Item 1/11

Introdução

Este texto foi elaborado para servir de referência às primeiras palestras de um curso de introdução à Antroposofia que eu dava com minha esposa Sonia A. Lanz Setzer. Em feveriro de 2021 tive oportunidade de dar módulo de um curso remotamente, ocasião em que fiz pequenas revisões nete texto.

Contrariamente à maneira usual de se começar um tal curso com a constituição quadrimembrada do ser humano, eu o tenho iniciado com a organização trimembrada. A primeira é a maneira usada por Rudolf Steiner, o fundador da Antroposofia, em seu livro fundamental A Ciência Oculta (São Paulo: Editora Antroposófica, 1998) – cujo nome seria mais adequado na forma 'A Ciência do Oculto'. Esse livro, cuja primeira edição data de dezembro de 1909, foi precedido em 1904 por outro, também fundamental, Teosofia (S.Paulo: Ed. Antroposófica, 1994). Neste último, Steiner inicia com o ser humano 'trimembrado'. Creio que essa maneira tem algumas vantagens em um curso introdutório, pois pode-se partir de expressões já conhecidas (corpo, alma e espírito), podendo-se motivar a sua introdução por meio de uma observação prática, como é feito neste texto. Assim, logo de início é mostrado como a Antroposofia conceitua, de maneira original, expressões que se tornaram nebulosas no decorrer da história, e como esses conceitos ajudam a compreender o ser humano. Este texto inova também na tentativa de motivar o uso dos conceitos emitidos, mostrando como se pode aplicá-los na compreensão de fenômenos simples, vivenciados no dia a dia. Para isso, os conceitos são entremeados com citações de algumas aplicações.

Um texto introdutório recomendado é o de Rudolf Lanz, Noções Básicas de Antroposofia (S.Paulo: Antroposófica, 1983, que cobre muito mais assuntos do que este texto – mas quem sabe algum dia este último será completado a fim de se tornar um novo livro introdutório.

É importante chamar a atenção para os que se interessarem por Antroposofia de que o seu estudo passa necessariamente pela leitura e releitura atenta dos dois livros fundamentais de Steiner citados acima. Não são textos fáceis e, segundo o próprio Steiner, seu estudo aprofundado produz no leitor uma transformação interior. Eles devem ser complementados com o estudo do livro de Steiner Filosofia da Liberdade (S.Paulo: Antroposófica, 1988). Esses três aprofundam muitos dos conceitos que exporemos aqui.

Agradeço à Dra. Sonia Setzer por frutíferas discussões e sugestões.

1. Corpo, alma e espírito

Rudolf Steiner relata que, no ano de 869, o Concílio de Constantinopla estabeleceu o dogma de que o ser humano é formado apenas de 'corpo' e 'alma', tendo-se eliminado o 'espírito' de sua constituição. Estabeleceu-se ainda que a alma tinha algumas 'características espirituais'. Segundo ele, esse foi um dos motivos da cisão da Igreja Ortodoxa, que continuou a encarar o ser humano como trimembrado.

Estando ausente do vocabulário oficial da Igreja Católica, que até há alguns séculos ditava no ocidente os costumes e conceitos ligados à espiritualidade, a palavra 'espírito' passou a ter múltiplas conotações. Aqui será estabelecido, dentro da conceituação introduzida por R.Steiner, como se pode caracterizar essa trimembração completa do ser humano em corpo, alma e espírito. No entanto, o modelo aqui exposto difere um pouco do de Steiner. Essa diferença náo será caracterizada, pois exigiria conhecimentos adicionais; para os que os conhecem, seria interessante observar que esse desvio foi feito no intuito de simplificar o modelo aqui descrito. Apesar disso, foram preservadas as noções mais fundamentais introduzidas por ele.

1.1 Corpo

Suponhamos que nos defrontemos com um vaso no qual há uma planta em flor. O que vemos?

É muito importante notar que não vemos nem um vaso, nem uma planta e nem uma flor. O que vemos, isto é, o que nos dá a nossa percepção sensorial da visão, são diferentes tonalidades de cores. Mas, atenção, também não vemos o 'vermelho' do vaso, o 'verde' das folhas etc., como ficará claro mais adiante. O que ocorre é a simples percepção dos impulsos luminosos dessas cores.

No processo de vermos o vaso e a planta, nosso corpo entra em atividade, por meio de nossos olhos. Se tocarmos o vaso, nosso corpo estará participando de um processo por meio de nossos dedos. Se pegarmos o vaso com os braços estendidos, teremos que fazer um esforço para segurá-lo, feito pelo corpo por meio das mãos e dos braços.

Todos esses processos são físicos. Com nosso corpo físico entramos em contato fisicamente com o mundo físico ao nosso redor, participando dele. Num primeiro momento, vamos restringir a noção de 'corpo' somente ao nosso corpo físico, isto é, aquele que é material, tem uma forma física, uma composição química e no qual se passam processos químicos e físicos. Posteriormente, a noção de 'corpo' será ampliada para abranger outros aspectos.

1.2 Alma

Voltemos ao vaso. Ao vermos a flor do vaso, com suas cores e formas, ocorre um processo dentro de nós: elas fazem-nos reagir interiormente, causando-nos inicialmente sensações. O verde das folhas nos dá uma certa sensação, o vermelho das pétalas, sua forma, o peso do vaso, também nos produzem sensações. Junto com essas sensações temos outro tipo de reação interior imediata, que são os sentimentos como, por exemplo, o de que a flor é bela e nos produz um prazer. Cheirando a flor, temos a sensação do odor, mas imediatamente reagimos com nossos sentimentos, achando que o cheiro é agradável ou não. Um outro exemplo pode ajudar a caracterizar melhor a diferença entre sensações e sentimentos: suponha que uma pessoa chupe um limão. As sensações envolvidas são o gosto particular daquele tipo de limão e sua acidez. Em seguida vêm os sentimentos: aquela pessoa gosta ou não do gosto daquele limão (ou de limões em geral).

É interessante refletir sobre quais são os sentimentos mais básicos. Certamente simpatia e antipatia são sentimentos bem básicos. Mas há outros ainda mais básicos: atração e repulsa. Se há atração por alguma coisa, há simpatia para com ela; se há repulsa, há antipatia. Gosta-se de algo quando há atração por esse algo; desgosta-se quando há repulsa.

Vamos formular a hipótese de que as sensações e sentimentos não provêm de nosso corpo, e sim de algo de nossa constituição não física que será denominada de alma. Os impulsos sensoriais são físicos, mas vamos considerar que as sensações e sentimentos provocados por esses impulsos não o sejam.

Poder-se-ia objetar que, ao se ter sensações e sentimentos, ocorrem alterações nas atividades neuronais de nosso cérebro e portanto eles são físicos. Mas essas atividades não contradizem a hipótese de que as sensações e sentimentos não são físicos. Segundo ela, eles produzem fenômenos físicos no cérebro, que constituem assim fenômenos secundários, isto é, conseqüências de atividades anímicas (isto é, da alma) não físicas. Isso de modo algum contradiz o conhecimento científico materialista que se tem atualmente do cérebro. De fato, o que se sabe é que, ao se ter certas sensações, sentimentos, impulsos de vontade, pensamentos ou lembranças, algumas regiões do cérebro ficam mais ativas do que outras. O que se passa com os neurônios, e se eles são a causa dessas atividades interiores ainda encontra-se em aberto do ponto de vista científico materialista. Sabe-se também que pessoas com lesões cerebrais não conseguem ter certos tipos dessas atividades interiores. Isso não significa que elas normalmente se originam nas áreas com lesão. Objetivamente, dever-se-ia no máximo afirmar que essas áreas participam do processo de se ter essas atividades interiores. Dentro dessa hipótese de existência de processos não físicos, estes podem existir mas, sem a parte cerebral, não serem conscientizados pela pessoa. R.Steiner dá uma interessante analogia nesse sentido. Ao nos vermos num espelho, conscientizamo-nos de nosso rosto. Se o espelho quebrar, continuamos a existir, mas não nos conscientizamos mais de nosso rosto.

A alma tem a capacidade de agir até no nosso corpo físico. Vejamos como se pode compreender, mesmo que seja vagamente, essa interação, usando duas possíveis explicações para esse fato. É interessante notar que 'partículas' atômicas parecem comportar-se em certas situações como 'pacotes de energia'. De fato, é impossível associar-se ao elétron uma 'bolinha' material, como se costuma fazer popular e erradamente desde o modelo de Rutherfor de 1911. Essa bolinha faria circunvoluções em torno do núcleo do átomo, como num modelo planetário. No entanto, essas circunvoluções implicariam necessariamente em mudança de direção da bolinha (por meio de aceleração centrífuga). Como ela é carregada eletricamente, essa mudança implicaria em irradiação eletromagnética, como em todas as antenas irradiantes, nas quais são produzidos movimentos de vai e vem dos elétrons. Pode-se imaginar que em nosso cérebro muitas dessas partículas que se comportam como pacotes de energia, estão em equilíbrio instável (como um lápis equilibrado em sua ponta) e, portanto, um infinitésimo de energia pode mudar seu estado. Talvez com isso se possa resolver o problema da atuação da 'mente' não física (parte da alma, em nosso caso), sobre a matéria física, detectando-se a atividade neuronal citada. Um outro possível enfoque para essa atuação emprega termos computacionais abstratos: suponha-se que os neurônios são sistemas não deterministas (o seu funcionamento aparentemente aleatório é indicado pelo fato de que, sob os mesmos estímulos, um neurônio às vezes dispara, outras vezes não dispara). Suponha-se ainda que o seu comportamento não é em geral aleatório, mas regulado (isto é, algumas transições não deterministas são escolhidas) por elementos não físicos da constituição humana – afinal, não temos a sensação de que nossos sentimentos, pensamentos e vontade são aleatórios! A decisão de seguir uma de várias possíveis transições não requer energia, dando portanto também margem à atuação do não físico sobre o físico.

É também interessante notar que os modelos matemáticos quânticos de átomos contêm elementos que não têm limite clássico, como o 'spin', isto é, não são redutíveis a tipos de energia que fazem sentido sensorial (como se fossem provenientes de uma força de atração conhecida, uma rotação etc.). É como se esses modelos mentais indicassem a não materialidade dessas partículas (incluindo o elétron!). Se a matéria em sua forma elementar deixa de ser material, também desaparece o problema de interação do não físico com a matéria. Além disso, é necessário reconhecer que os modelos matemáticos existentes há muito tempo, em especial os da Mecânica Quântica, refletem de maneira razoável apenas o comportamento mensurável dos átomos mais simples – a propósito, em situações que não têm nada a ver com as partículas em estado normal da matéria, pois são resultados de colisões artificiais de altíssima energia. Podem-se, portanto, afirmar que há um profundo desconhecimento da natureza das partículas elementares, e portanto do que vem a ser a matéria. De fato, parece-nos óbvio que do ponto de vista material a matéria não faz sentido (pois uma partícula indivisível não faria sentido). Desse ponto de vista, o materialismo, que originou o método científico atual, não tem base, pois não se sabe o que é a matéria. É interessante notar que temos uma vivência objetiva da matéria. Por exemplo, dê-se um soco em uma parede para se ter uma nítida vivância da matéria. No entanto, segundo o citado método científico, não se sabe o que é a matéria em suas partes mais ínfimas.

Assim, sentimo-nos à vontade, do ponto de vista do conhecimento científico atual, para admitir processos não físicos no universo e, em particular, no ser humano. Por falar nisso, há um argumento irrefutável para a consideração de processos não físicos no universo: a origem de sua matéria e energia, bem como suas fronteiras não fazem sentido físico.

O importante para nosso modelo do ser humano é que a parte de nossa constituição que foi denomiada de 'alma' não é física, e não pode ser reduzida a processos físico e químicos, apesar de poder influenciar nosso corpo físico, e ser influenciada por meio deste. Segundo o modelo aqui formulado, temos sensações e sentimentos devido à existência de nossa alma. Além delas, há ainda outras manifestações da alma. Assim, voltando ao exemplo do vaso com a flor, dado no início deste item, o simples olhar a flor pode despertar uma outra manifestação de nossa alma: o impulso de vontade de cheirar ou tocar a flor. Se, para isso, tivermos pego em seu ramo e sido picados por um espinho, teríamos o instinto de imediatamente largar o ramo. Impulsos de vontade e instintos (que são um tipo de vontade), são também manifestações da alma, e ainda há outras.

Aqui será introduzida mais uma hipótese de trabalho: plantas não têm sensações, nem sentimentos, nem instintos ou vontade. Por exemplo, as reações de uma planta à luz, crescendo em direção a esta, não devem ser confundidas com as reações interiores provenientes de sensações e nem de instintos. Sensações são reações interiores que devem poder ser percebidas interiormente pelo ser. A planta reage a um impulso físico da luz, crescendo em direção a esta, mas sem experimentar uma sensação como se passa, com outras excitações externas, em animais e nos seres humanos. Assim, pode-se dizer que as plantas não têm alma, mas tanto os seres humanos como os animais as têm. Atenção: ao se estabelecer esses conceitos devem-se examinar sempre as plantas e animais típicos, descartando os casos de transição. Estes deveriam ser examinados à luz dos casos mais gerais, em um enfoque científico goethiano. No caso dos seres humanos, a alma tem capacidades inexistentes nas almas dos animais que, como veremos, devem-se a constituintes diferenciados presentes na primeira.

O que os seres humanos têm, mas que falta aos animais, virá no próximo item. No momento, é importante ainda reconhecer que cada ser humano tem sensações e sentimentos absolutamente individuais. É impossível para uma pessoa sentir uma sensação ou um sentimento que outra pessoa está sentindo. Esta última pode até expressar a sua sensação, dizendo: "Esta flor dá-me tanto prazer!" Mas o prazer propriamente dito que ela sente só ela pode sentir. Da mesma maneira, cada qual tem seu instinto, não se podendo ter o instinto do outro. Assim, características e atividades anímicas são estritamente individuais e subjetivas. Por meio do corpo físico recebemos estímulos sensoriais, eventualmente de objetos externos a nós. Por meio da alma, interiorizamos esses objetos de maneira estritamente pessoal, subjetiva, com alguma reação puramente interior.

1.3 Espírito

Voltemos ao exemplo do vaso. Com o corpo, recebemos impressões sensoriais como as luminosas e táteis, e sofremos a ação do peso do vaso e da planta se o erguemos. Com a alma reagimos interiormente a essas percepções, sentindo sensações ou sentimentos, tendo com isso manifestações de vontade. Mas logo que percebemos algo com nossos sentidos corporais, logo que temos sensações e sentimentos ligados às percepções, formulamos algo com nosso pensamento: estamos 'vendo' um vaso, uma planta, uma flor, a flor é uma rosa, 'vemos' as cores vermelha, verde etc. 'Vaso', 'planta', 'rosa', 'vermelho' etc. são conceitos. É fundamental, do ponto de vista de cognição, compreendermos que não vemos um 'vaso'. Insistindo, o que vemos são diferenças de impulsos luminosos: as impressões luminosas do vaso e da planta em contraste com as impressões do fundo etc. Por meio do pensamento, associamos uma representação mental ('Vorstellung', no alemão) do vaso e da planta que se segue à percepção dos impulsos luminosos, aos conceitos de 'vaso', 'planta', 'flor', 'rosa' etc. Infelizmente foi necessário introduzir a noção de 'representação mental' em contraposição à de 'percepção', mas isso não será aprofundado, devendo esses termos ser e tomados de maneira ingênua, caso contrário teríamos que discorrer longamente sobre cognição.

Façamos agora a hipótese de trabalho de que a associação de uma representação mental interior a um conceito não é feita pelo corpo ou pela alma, mas por um terceiro membro de nossa constituição: o espírito, que para isso emprega o pensar.

O espírito também não é físico, mas é de natureza diferente da alma. Como há substâncias físicas de várias naturezas – a sólida, a líqüida, a gasosa, cada qual mais sutil que a anterior –, pode-se supor que exista uma hierarquia de 'substâncias' não físicas. A 'substância' espiritual é mais sutil do que a anímica e, portanto, 'superior' e esta.

É por meio do espírito presente em cada ser humano que este entra em contato com os conceitos. Ora, conceitos claramente não são físicos. Isso é absolutamente claro na Matemática, em particular na Geometria. Por exemplo, o conceito de circunferência como lugar geométrico dos pontos eqüidistantes de um ponto, o centro, é um conceito imaterial, isto é, não físico. Aliás, o próprio conceito de 'ponto' é imaterial; nunca alguém viu um ponto geométrico, assim como nunca alguém viu uma circunferência perfeita. O que se vê são aproximações, seja em desenhos, seja em objetos mais ou menos circulares.

Além de não serem físicos, conceitos são também universais, pois não dependem do sujeito que entra em contato com eles – o conceito de circunferência é o mesmo para todas as pessoas. Mais ainda, ele não é temporal ou, melhor dizendo, é eterno, pois não muda com o tempo. Segundo B. Spinoza, em sua Ética, prop. 3, "De coisas que não têm nada em comum, uma não pode ser a causa da outra." ("Quae res nihil commune inter se habent, earum una alterius causa esse non potest.") Isso nos leva a uma caracterização de 'espírito'. Suponhamos que um conceito eterno, como o de circunferência, que obviamente não depende da existência de alguém que o formule, exista num mundo espiritual, o mundo das idéias platônicas (que aqui será suposto como tendo existência real, mas não física). Se é com nosso espírito que entramos em contato com um conceito eterno, aquele também deve ser eterno. Aristóteles já havia usado um raciocínio puramente lógico como esse, em seu Sobre a Alma: se podemos entrar em contato com conceitos eternos como os matemáticos, temos que ter em nós algo de eterno. A partir daí ele formulou que nossa alma deve ter duas componentes, uma que contém nossos gostos, instintos etc., que desaparece quando morremos, e outra que deve ser eterna e subsiste após a morte. Na presente formulação, a primeira será denominada simplesmente de 'alma' e a segunda de 'espírito'.

Por meio do corpo somos seres objetivos, pois entramos em contato com algo que não está em nós. Por meio da alma somos seres subjetivos, pois com ela temos reações interiores absolutamente individuais. Por meio do espírito temos atividades voltadas tanto para o que é subjetivo, quanto para o que é objetivo: podemos com ele reconhecer as nossas sensações, sentimentos ou instintos subjetivos ("esta rosa torna-me alegre", "estou com fome", "estou triste" etc.). Mas também podemos reconhecer nos objetos que percebemos conceitos como 'rosa', que não dependem de nossa particular situação momentânea, da maneira como a percebemos visualmente, do fato de gostarmos ou não dela etc. (obviamente, está sendo suposto que as percepções sensoriais sejam relativamente nítidas e sadias, e uma capacidade de conceituação também sadia). Com nosso espírito temos a percepção objetiva da essência superior daquilo que percebemos sensorialmente, ou mesmo de entes que não têm manifestação física, como por exemplo os matemáticos.

Deve-se a Steiner (veja-se seu livro Filosofia da Liberdade, já citado) a contribuição de ter formulado a cognição como sendo uma percepção do espírito. Por meio de nosso espírito podemos completar a subjetividade de nossa percepção e da representação mental, associando-as com algo que está fora de nós como o está o objeto percebido, mas que está ligado a este, sendo porém imperceptível aos nossos sentidos e ao nosso corpo: o conceito do próprio objeto. Nossas percepções sempre são parciais, como por exemplo olhar a rosa de um certo ângulo. O espírito completa essas percepções colocando o sujeito em contato com a essência do objeto percebido, essência esta que está no mundo platônico das idéias, subjacente ao mundo físico. Assim, conhecimento só pode ser obtido pela atuação de nosso espírito.

É uma lástima que a ciência materialista moderna tenha um profundo preconceito contra qualquer manifestação ou conceito que envolva algo não físico. Se este modelo aqui apresentado estiver correto, é inútil procurar a origem do pensamento nos neurônios. Pelo contrário, admitindo-se que o funcionamento dos neurônios talvez seja uma conseqüência de processos não físicos, abrir-se-ia um imenso campo de pesquisas. Essa situação lembra bem a história do bêbado que estava procurando, em baixo do poste de luz, as chaves havia perdido, e não mais adiante, onde realmente as tinha perdido, mas onde estava escuro. Com a luz do materialismo, e o método científico nele baseado, está se procurando as chaves onde não se as perdeu, simplesmente por preconceito de usar outros meios (na metáfora, tatear em vez de enxergar). Assim nunca se irá encontrá-las e; fica aqui conjeturado que nunca se obterá conhecimento satisfatório sobre nossas representações mentais, o pensamento, os sentimentos, o sono, o sonho, a vida etc. Infelizmente há, além do citado preconceito, um profundo medo de se ampliar o método materialista pois tem-se a fé de que essa ampliação levaria ao misticismo e à crendice. Os leitores não devem reconhecer neste e em outros textos de minha autoria qualquer um dos dois. Foi R. Steiner quem mostrou que é possível conceituar objetivamente e compreender o mundo não físico (de fato, é mais importante compreender esse mundo do que observá-lo), o que leva a um profundo entendimento do mundo físico, pois este é uma manifestação daquele. Por exemplo, a forma típica de uma espécie de seres vivos sempre segue um determinado padrão, comum a todos os indivíduos da espécie. Esse padrão é a expressão física do conceito daquela espécie, que existe no mundo espiritual (veja-se meu ensaio "Desmistificação da onda do DNA" em meu site).

Uma outra característica fundamental do espírito é a de conferir ao ser humano a capacidade de consultar a memória. Podemos lembrar de algo, por um esforço interior, sem nenhum impulso ou necessidade que nos obrigue a isso. Por exemplo, podemos estar completamente sem fome e decidir lembrar de uma agradável refeição que fizemos no dia anterior. É justamente essa capacidade de nosso espírito consultar nossa memória, por meio do pensamento, que nos faz poder deduzir relações de causa e efeito. É ela que nos fornece a continuidade para nossa vida, que seria totalmente fragmentada se dependesse exclusivamente dos nossos sentidos e das representações mentais baseadas somente no que eles percebem. É devido à memória que o espírito tem a capacidade de associar a percepção de um objeto com o conceito correto de sua essência, baseado em experiências anteriores.

Assim, por meio de nosso corpo temos percepções instantâneas do mundo ao nosso redor. É nosso espírito que liga essas percepções, fazendo delas um todo coerente e recompondo a verdade da permanência e das causas e efeitos. É ele que nos faz reconhecer a rosa meio murcha de hoje como sendo a mesma rosa viçosa que vimos ontem, apesar da forma um pouco diferente.

Os animais não têm memória. Em seu livro já citado A Ciência Oculta, no cap. "A essência do ser humano", R.Steiner formula que um animal pode ter, em ocasiões diferentes, as mesmas sensações a determinados impulsos interiores ou exteriores já experimentados anteriormente. Ele dá o exemplo de um cão que se alegra ao rever o dono. Não se trata de, como no ser humano, uma associação da representação mental da pessoa sendo vista, com a memória de representações semelhantes passadas. O cão simplesmente sente o mesmo prazer cada vez que vê o dono e, por isso, alegra-se. O condicionamento de um animal seria justamente fazê-lo ter sempre a mesma sensação a um determinado impulso exterior e, com isso, ter o mesmo sentimento ou a mesma reação de vontade. Se um certo gato fica com fome, tem o impulso de se dirigir em busca do recipiente com ração, sempre deixada no mesmo local pelo seu dono. O que o gato não pode fazer é, sem sentir fome, lembrar-se da gostosa ração que está naquele recipiente. Um cachorro pode sentir a falta do dono, se sentir fome ou seu cheiro em um sapato e, talvez, até se sentir falta de carinho. Mas sem um impulso interior, como um instinto ou uma sensação, ele não sentirá falta do dono. E em nenhum caso um animal pode recompor interiormente uma imagem, na forma de representação mental, como fazemos ao consultar nossa memória. Uma cuidadosa observação dos animais pode levar à conclusão de que essas considerações são verdadeiras.

Já a falta de memória mostra que os animais não possuem o elemento que foi conceituado como 'espírito' pois, se este existisse e atuasse sadiamente, ela também existiria. E pela falta dele eles não podem entrar em contato com os conceitos, que são da mesma natureza. Uma abelha faz favos hexagonais, mas ela não tem consciência desse fato; seus instintos fazem-na construir hexágonos aproximadamente regulares, sem que ela reconheça o conceito que há em comum entre todos esses polígonos. Por isso a abelha não pode subitamente decidir fazer favos pentagonais ou heptagonais (existe aí envolvido um fator de economia, mas que obviamente é totalmente ignorado pela abelha; um instinto sábio 'programa' as abelhas a fazerem sua colméia sempre dessa melhor forma).

O ser humano poderia decidir fazer um 'favo' de uma outra forma geométrica, talvez por motivos estéticos. É só observar o mundo e notar-se-á que são os seres humanos que introduzem novidades nele. Os animais seguem externamente seus 'programas' internos, vinculados inclusive ao seu próprio corpo. O ambiente externo pode, obviamente, condicionar o animal a agir diferentemente, alterando aqueles 'programas'. Os seres humanos podem ir contra seus instintos, como alguém que faz um regime dietético apesar de gostar imensamente de comer. Aliás, supondo que essa pessoa não esteja sofrendo com um pouco de excesso de peso, o motivo da dieta pode ser ligado a um conceito de saúde ou a um conceito de estética, isto é, pode ser independente de alguma necessidade física percebida pelo corpo.

Assim, é o espírito que faz um ser humano realmente humano, e o distingue dos animais. Nós temos auto-consciência, individualidade superior que transcende nosso corpo e nossa alme, liberdade e moralidade, justamente devido à presença do espírito dentro de nós. Os animais não têm nenhuma dessas capacidades. Eles têm consciência – como se pode notar quando se ferem e reagem a isso – mas não têm auto-consciência, isto é, consciência de, por exemplo, saber que tipo de dor estão sentindo, pois esse tipo é um conceito.

A presença do espírito é que dá real individualidade ao ser humano. Referimo-nos aqui a uma manifestação superior, que vai além da óbvia presença de uma individualidade única devida à hereditariedade e às influências do meio ambiente. Essa individualidade inferior envolve por exemplo uma face única, uma impressão digital única, gostos únicos, interesses únicos, mas não é a isso que está sendo denominado aqui de 'individualidade superior', aquilo do qual temos uma leve percepção quando, referindo-nos a nós mesmos, chamamo-nos de "Eu". Steiner chamou a atenção para o significado muito especial que essa palavra tem: alguém pode usar outras denominações ao referir-se a vários objetos ou pessoas que estão fora dele próprio, como "esta é uma mesa", "este é o Tonico" etc. Mas a denominação "Eu" só pode ser usada quando ele está se referindo a si próprio – e de uma maneira bem ampla, envolvendo muito mais do que seu aspecto, seus gostos, sua memória etc.

A ciência materialista de hoje não pode, com suas terríveis limitações de visão de mundo, admitir a existência dessa individualidade superior. Ela postula que o ser humano é exclusivamente fruto da hereditariedade e da influência do meio ambiente. A hipótese da existência do elemento 'espírito' leva a esse terceiro elemento em cada indivíduo. E é devido a ele que se pode compreender como gêmeos univitelinos que viveram juntos acabem tendo ideais e profissões diferentes. Uma conseqüência dessa concepção é que é impossível prever o comportamento de uma pessoa baseando-se exclusivamente em sua herança genética e na influência do meio ambiente. Em particular, pode-se conjeturar que a partir do levantamento do genoma humano não se poderá controlar sua vida como se pretende, por exemplo evitando doenças de maneira determinista. A manifestação de uma predisposição genética depende, neste modelo, da necessidade do espírito da pessoa. Este também atua no inconsciente, por exemplo levando a pessoa a uma situação onde pode se desenvolver – o que poderia ser denominado de 'destino'. Note-se que em qualquer situação em que se encontre, a pessoa pode, a partir de seu espírito, agora em ato consciente, decidir-se a tomar este ou aquele caminho, de modo que o destino não coíbe a liberdade, simplesmente cria as situações favoráveis para o desenvolvimento pessoal – inclusive 'pegando-se' doenças. Observe-se a profunda sabedoria da língua, que provém de uma época em que se sabia intuitivamente muita coisa que se perdeu: não se diz 'a doença me pegou', mas o contrário. Note-se também que estamos imersos em um mundo de vírus, bactérias e micróbios, mas uma pessoa sadia raramente 'pega' uma doença. Isso se dá quando ela tiver a predisposição para isso, e no momento adequado ao seu desenvolvimento – em um sentido muito amplo. Em geral a medicina estuda e trata da patogênese; ela deveria também estudar e tratar (no caso, dar diretivas para manter) a 'salutogênese', termo introduzido por Aaron Antonovsky. Ele desenvolveu esse ramo a partir de observações de pessoas que tinham passado pelos horrores de campos de concentração e extermínio nazistas mas que, no entanto, tinham uma saúde física e mental excelente.

Já que foi falado de doença, seria interessante colocar aqui o seguinte. Observando-se a natureza, notamos nela uma imensa sabedoria. E o que há de mais sábio na natureza é o corpo humano. (De um certo ponto de vista espiritualista, essa sabedoria desse corpo não é fruto de mutações casuais e seleção natural, mas de uma atuação gradual de seres espirituais e de nosso próprio espírito.) Pois bem, como conciliar uma tal sabedoria com a aparente falha desse corpo, adquirindo doenças? Esse paradoxo pode ser resolvido supondo-se que as doenças são necessárias para o desenvolvimento pessoal. O papel do médico torna-se, nessa concepção, um ajudante para que o doente possa superar a doença aprendendo com ela o que ela está tentando ensinar. Obviamente, um médico nunca pode ter o conhecimento suficiente para dizer que uma doença deveria ser fatal, de modo que a primeira obrigação dele é salvar a vida e impedir um sofrimento atroz. Dentro desse princípio é que ele deve tentar fazer com que a doença se manifeste da melhor maneira possível. É por isso que a medicina ampliada pela Antroposofia não é sintomática, isto é, não procura em primeiro lugar eliminar os sintomas, como faz em geral a medicina clássica. Os sintomas são apenas uma manifestação exterior de um processo que em geral deve cumprir-se adequadamente e não ser simplesmente interrompido.

Sem o elemento 'espírito', não se pode associar liberdade ao ser humano. A matéria, sem ser comandada por algo não físico (essa possibilidade foi abordada no item anterior), segue leis físicas, que são inexoráveis. Portanto, da matéria não pode advir liberdade, no máximo aleatoriedade. Mas o ser humano não é um ser caótico, em estados de boa saúde – física, anímica e espiritual.

A partir da alma também não se chega à liberdade. Por exemplo, não podemos controlar se sentimos antipatia ou simpatia por outra pessoa à primeira vista. O que podemos controlar – pela atuação de nosso espírito! – é nossa atitude baseada nesses sentimentos. Por exemplo, conscientizando-nos de uma antipatia por uma pessoa, podemos forçar-nos a conversar ou ter contato com ela. Com isso, podemos descobrir nela qualidades que fazem nossa antipatia aos poucos transformar-se em simpatia. Assim, nosso espírito dirigiu, em liberdade, um ato que teria sido o contrário se tivéssemos seguido o impulso da alma.

Essa ligação da liberdade com a auto-consciência vai mais longe: não se pode falar em uma decisão livre (e, por conseqüência, em um ato livre), se ela não for tomada em plena auto-consciência. Usando um exemplo de Steiner no citado livro A Fiolosofia da Liberdade, não se pode afirmar que um bêbado age em liberdade.

Finalmente, a liberdade nos leva à moralidade. Um ato é moral se ele é feito conscientemente, em liberdade, e está de acordo com as verdades cósmicas, isto é, as físicas e as não físicas. Por exemplo, reconhecendo-se que cada ser humano tem um espírito individual dentro de si, que se manifesta por meio de sua auto-consciência, individualidade e liberdade, qualquer ação sobre uma pessoa sã que prejudique essas suas 3 características deveria, em princípio, ser considerada imoral. Note-se que foi usada a palavra 'sã': uma pessoa dominada, por exemplo, por instintos suicidas ou homicidas não é, nesse sentido uma pessoa 'sã'.

É devido à presença do espírito dentro de cada um de nós que podemos praticar o amor altruísta. Um ato de amor altruísta não pode advir nem do corpo, nem da alma. Ações que provêm de um deles ou de ambos só podem ser egoístas. De certa maneira, Richard Dawkins (O Gene Egoísta. Lisboa: Gradiva Publicações, 1989) está correto: os genes são egoístas – mas a partir deles nunca se pode chegar a uma ação verdadeiramente altruísta. Como materialista, Dawkins não pode admitir a hipótese da existência de algo não físico dentro do ser humano, e daí qualquer consideração sua que leve a um altruísmo é, segundo o nosso modelo, falaciosa (inclusive, seguindo o que Darwin já havia especulado, a de que pessoas altruístas tiveram mais aceitação na comunidade e sobreviveram melhor, isto é, o altruísmo é, pasmem, conseqüência do egoísmo!). Aliás, a aplicação de conceitos evolucionistas a seres humanos é absolutamente indevida. Isso já foi constatado por A. Russel Wallace, o descobridor da Seleção Natural em paralelo com Darwin, mas independentemente deste (ambos apresentaram sua teoria na mesma sessão da Academia Real em Londres). Só que Wallace, ao contrário de Darwin e dos darwinistas típicos até hoje, era espiritualista – o que obviamente não o impediu de ser um grande biólogo! Infelizmente, Wallace e seus contemporâneos não tinham a conceituação do espírito como formulada e vivenciada por Steiner, e não puderam trabalhar com esse conceito. Com essa conceituação, fica claro o ridículo de aplicar aos seres humanos conceitos evolucionistas, voltados exclusivamente à nossa corporalidade física, e nem mesmo à nossa constituição anímica.

Para se fazer uma ação altruísta, beneficiando a outrem sem que nossa ação redunde em benefício próprio, é necessário haver um elemento dentro de nós que está acima das necessidades impostas por nosso corpo e pelos sentimentos advindos de nossa alma, como antipatias e simpatias. Um exemplo simples de uma ação dessas é uma doação completamente sem amarras, em que o receptor tem a total liberdade de usar o objeto ou quantia doada como bem lhe aprouver. Em seu livro Economia Viva (S.Paulo: Ed. Antroposófica, 1995) R.Steiner discorre sobre o que ele denominou de 'dinheiro de doação'.

Vê-se por tudo isso como a noção da existência do elemento 'espírito', como caracterizado, completando a trimembração do ser humano, é absolutamente essencial para se chegar ao ser humano global e compreender as suas manifestações que se pode observar com nossos sentidos. Pode-se conjeturar que a ciência, limitada pela visão materialista – e que nem reconhece uma 'alma' –, ou uma psicologia estendida que se baseia exclusivamente no corpo e na alma, jamais serão capazes de levar a uma compreensão profunda do ser humano. Sem essa visão jamais teremos, por exemplo, uma educação adequada ao desenvolvimento amplo e harmonioso de cada ser humano, bem como uma sociologia e uma economia que permitam uma organização social mais sadia do que a que estamos vivendo, e que claramente está destruindo a sociedade em lugar de elevá-la.

 


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