Relação Homem–Máquina

Rosangela Stefanelli (*)

(Entrevista publicada na revista bios - Boletim Informativo da Faculdade Senac de Ciências Exatas e Tecnologia, No. 7, dezembro de 2002, pp. 5-7; revista em 20/3/03 por V.W.Setzer))

Existe idade certa para aprender a usar o computador? O uso do computador melhora o rendimento escolar? A pesquisa escolar na Internet amplia a capacidade de argumentação do aluno? O uso do computador cerceia a imaginação infantil? Qual o papel dos pais, professores e instituições educacionais, em uma sociedade cada vez mais instrumentalizada pelas ferramentas da tecnologia?

Para tentar responder estas questões, o bios foi ouvir Valdemar Setzer, professor titular e um dos fundadores do curso de Ciência da Computação da USP. Anos de estudos e pesquisa tornaram Setzer um crítico contumaz do uso precoce do computador e dos meios eletrônicos. TV, videogame e computador – eternos objetos de desejo de consumo, nunca decoraram sua casa. Fã do filósofo e poeta Goethe, em quem reconhece o grande precursor de uma ciência mais humana, Setzer é um entusiasta da Pedagogia Waldorf, método que prioriza, no ensino fundamental, um aprendizado feito por meio de atividades artísticas e pela apresentação artística de cada matéria, inclusive Matemática. A seguir, os melhores trechos da entrevista.

bios Máquinas pensam?

Setzer – O computador é uma máquina como jamais houve na História. Outras máquinas têm uma funcionalidade que pode ser resumida numa breve frase: servem para transformar, transportar ou armazenar matéria ou energia. O computador também tem essas funcionalidades, mas o faz com algo que não é matéria nem energia: dados. Defino dado como uma representação simbólica quantificada ou quantificável. Um computador só armazena e processa dados. Exemplos de dados são textos, sons ou vídeo. Se armazenados em um computador, não diferem de um livro ou de um gravador. A grande distinção do computador acontece quando ele processa os dados, pois isso é feito em uma matemática restrita, a algorítmica, que é um caso particular da lógica simbólica. Qualquer comando que se dá a um computador, numa linguagem de controle de qualquer software, é na verdade parte de uma linguagem estritamente formal, que ativa funções matemáticas na lógica simbólica, definida pelo computador. Assim, o pobre usuário não percebe, mas a cada comando seu, por exemplo no alinhamento de um texto, ele está ativando uma função matemática. Assim, ele é forçado a pensar algoritmicamente. Jamais se deve dizer que um computador pensa. O que ele faz é simular pensamentos restritos, desenvolvidos por um programador que estava pensando no espaço restrito apresentado pela máquina, e ativados pelo usuário. Como simulador, ele reage cegamente e nunca com criatividade (caso fosse assim, não faria o que se deseja que ele faça), que é uma das características do verdadeiro pensar.

bios – O uso do computador é estimulado na pré-escola como diferencial da proposta pedagógica. Como vê esta questão?

Setzer – Não sou contra o uso útil de computadores. Alerto para o fato de ser prejudicial o seu uso na fase infanto-juvenil. O argumento de que crianças e jovens devem acostumar-se com essas máquinas é totalmente falacioso. Quando se tornarem adultos, o software será completamente diferente e os computadores tão simples de aprender, que não será necessário nenhum curso para isso (já acho que não é). Computador faz muito mal às crianças. Do ponto de vista de raciocínio, é como se elas fossem forçadas a aprender teoremas. No uso de qualquer aplicação computacional, os comandos que a criança tem que dar se resumem a uma linguagem matemática. O que é péssimo, pois não é normal que uma criança expresse-se de maneira rígida, morta, matematicamente definida. Isso deturpa seu pensamento, que nessa fase deve ser ainda ambíguo, cheio de inflexões, de vida e de fantasias informais.

bios – Quanto ao aprendizado precoce de computação, que recado daria aos pais?

Setzer – Tire a TV, o videogame e o computador do alcance de suas crianças porque esses três meios aceleram o amadurecimento intelectual e perturbam o seu desenvolvimento psicológico e psíquico. O que é muito ruim, pois a criança deve passar por fases de evolução harmônica, tanto física como psíquica. Em educação, não se pode queimar etapas. Pode haver uma objeção de que a criança, sem acesso a essas máquinas, sentir-se-á diferente de outras. Porém, há uma grande reflexão que os pais devem fazer sobre a questão: o que é pior? O prejuízo psicológico do filho ao se sentir diferente perante seu meio social por não usar os meios eletrônicos, ou o mal que eles fazem para o desenvolvimento da criança e do jovem? Creio que essa questão seja de muita angústia para os pais, pois o computador tem sido introduzido em escala nas escolas com muito entusiasmo, desde o fim da década de 80. Se filhos não usam computadores, os pais ficam ansiosos por acharem que eles não estão se beneficiando de uma poderosa ferramenta educacional. E o pior, supõem que estejam atrasados em relação aos colegas e amigos, o que pode gerar uma crença de que os filhos não estão sendo adequadamente preparados para sua vida social e profissional. Afirmo, porém, que uma das maiores enganações educacionais, que ocorrem hoje, é que crianças precisam aprender a usar um computador, caso contrário serão profissionais de segunda categoria.

bios – Na sua visão, qual o papel da tecnologia em relação à educação?

Setzer – Nossa sociedade está se tornando cada vez mais centrada e dependente das máquinas. Em vez de as dominarmos, estamos sendo dominados por elas. Vemos professores despreparados para o ensino, com falta de entusiasmo, falta de amor pelos alunos, usando metodologias deficientes, baseadas em filosofias ou teorias educacionais que são em geral meras elucubrações mentais, em lugar de reflexões impregnadas de realidade. Assim, o computador soa como um alarme para todos ouvirem: é um absurdo que uma máquina possa ser mais interessante e atrair mais atenção no processo educativo do que um ser humano, se este tiver a sensibilidade social e a criatividade que deveria ter um professor. A educação está péssima, mas o problema universal não é tecnológico. A escola de sucesso do futuro não será mais tecnológica, será mais humana. Uma escola na qual os alunos serão atraídos para os assuntos por sua beleza e utilidade, pela maneira viva como são apresentados, pelo amor do professor ao ensino e aos estudantes e não por causa do meio, cheio de cosmético, empregado para transmiti-los.

bios – Diante desta análise, o professor ainda é o grande agente de transformação do processo educativo...

Setzer - O papel do professor é improvisar sua melhor atuação, para despertar e estimular os alunos no contexto geral dos mesmos. No ensino médio, um professor de matemática, por exemplo, deveria discutir questões humanas em geral. Pois na relação aluno-professor esta reflexão representa ganho de argumento humano e social. Sempre dou umas ‘bicadinhas’ filosóficas em minhas aulas, por mais técnicas que sejam. Quer uma técnica estimulante para o aprendizado em sala de aula? Ao final, peço para cada aluno responder brevemente a duas perguntas, em um pedaço de papel: 1. o que foi aprendido de mais importante nesta aula? 2. qual a maior dúvida que ficou? Inicio a próxima aula com a análise das respostas. Em geral tenho que me conter para não passar a aula inteira discutindo com os alunos, tamanho o interesse de todos pelas questões que eles mesmos levantaram. Defendo um pouco de reflexão filosófica em qualquer aula de qualquer matéria, porque os alunos pedem e querem discutir a vida e não uma montanha de teorias, que nada tem a ver com a nossa realidade.

bios – Como vê o atual desenvolvimento da pesquisa científica?

Setzer - No meio científico há uma interpretação generalizada e tragicamente equivocada de que o ser humano é uma máquina. A hipótese de que a origem e os limites do universo são processos puramente físicos não faz sentido. É preciso admitir como hipótese de trabalho, não como crença ou fé, que existem processos não físicos como, por exemplo, o pensar humano. Isso ampliaria radicalmente a pesquisa científica e possibilitaria a ciência de tornar-se humana. Um outro aspecto é que o método científico atual é desumano. Por exemplo, ele exige reprodutibilidade. Acontece que o ser humano incorpora todas as suas vivências e nunca volta a um estágio anterior, isto é, não é reprodutível. Além disso, existe pouco idealismo entre os cientistas, o que é péssimo. Hoje, a pesquisa não visa a coletividade humana. Cientistas, em sua grande parte, são egoístas, trabalham para obter prestígio e investimentos para seus projetos. Além disso, é preciso compreender que quando o computador entra como elemento de uma pesquisa, o processamento só é feito de forma quantitativa, o que faz com que a ciência perca a qualidade. Mas, cuidado, não sou contra a pesquisa e sou radicalmente a favor da sua liberdade. Cada cientista deve pesquisar aquilo que considera importante.

bios - No curso de Ciência da Computação, o computador é ferramenta de trabalho. Como analisa o uso deles em sala de aula?

Setzer – Alunos de Ciência da Computação são forçados a pensar de maneira extremamente restrita e bitolada, abstrata e formalmente. Quando programam, pensam algoritmicamente e no espaço bitolado apresentado pelos comandos de uma linguagem de programação, isto é, pensamentos que podem ser introduzidos em uma máquina, o que chamo de ‘pensamentos maquinais’. Isso tudo gera uma poluição mental. O antídoto é limpar o pensamento de vez em quando. Como? Com atividades artísticas. Em 2000, introduzi no curso de Ciência da Computação do IME a disciplina "Leitura Dramática", ministrada magistralmente pela atriz e dramaturga Jolanda Gentilezza. O resultado foi extraordinário. A leitura dramática para alunos de computação é importante, em parte, porque o computador isola socialmente as pessoas, e essa disciplina requer interação e sensibilidade sociais. Além disso, ela apresenta um ambiente mal definido, onde há margem para improvisações em cada instante, envolvento diretamente a parte emocional de cada um - o oposto do racionalismo maquinal das disciplinas de computação. Um resultado dessa disciplina foi a transformação de um calouro de 2001, que de tão tímido andava olhando para os pés. A vivência da disciplina o transformou. Meses depois, trabalhava no Centro Acadêmico, ria ao falar com os colegas pelos corredores, etc. Imagine o que significa formar um aluno com sensibilidade social, capacidade de expressar-se em público, habilidade de colocar emoção em sua voz, como são desenvolvidos nas atividades dessa disciplina.

bios – Sobre a Internet, seu criador, Tim Berners-Lee, declarou que: "a web é uma criação social construída para um efeito pessoal – ajudar as pessoas a trabalharem juntas – e não um brinquedo tecnológico". Qual o papel da Internet na educação?

Setzer - A Internet é muito mais usada como diversão do que qualquer outra coisa. De fato, ela pode estabelecer contato entre pessoas, porém pode viciá-las a manter um contato apenas virtual, perdendo assim a capacidade de relacionamento pessoal. Há dois problemas principais em termos educacionais: 1) a Internet introduz uma educação que chamei de "libertária", na qual a criança ou o jovem faz o que quer, e 2) sem um mínimo de contextualização. Isso exige enorme discernimento para se julgar o que se está obtendo com ela e se crianças o têm, já perderam a infância. Dizem que isso ajuda as crianças a desenvolverem senso crítico. Pois isso é justamente o que crianças não deveriam desenvolver. Senso crítico deve ser desenvolvido paulatinamente e somente após a puberdade. Penso que a idade ideal para permitir o acesso a este meio seria aos 16-17 anos. Antes disso, os pais que infelizmente acham útil o uso da Internet devem ficar sempre ao lado dos filhos, para exercerem o discernimento e controle.

(*) Rosangela Stefanelli é coordenadora editorial do bios, boletim da Faculdade SENAC de Ciências Exatas e Tecnologia, www.sp.senac.br/cienciasexatas

Valdemar Setzer é engenheiro eletrônico, formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). É professor titular do departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP. Mesmo aposentado, continua a orientar teses, a pesquisar e a ensinar alunos de Ciência da Computação, curso que estruturou no período 1972-1974. Foi fundador e diretor do Centro de Computação Eletrônica da USP e do Centro de Ensino de Computação do IME. Publicou 11 livros, com tradução em países como Inglaterra, Alemanha e Finlândia. Atualmente trabalha na nova versão de seu livro sobre Bancos de Dados. Atua como consultor nas áreas de engenharia de software, banco de dados e sistemas de gerenciamento de competências e também como articulista e palestrante, com foco em temas ligados às vertentes da tecnologia, da educação e da filosofia.

Leitura Recomendada: Meios Eletrônicos e Educação – Uma visão alternativa, de Valdemar W. Setzer, 2ª edição. São Paulo: Editora Escrituras, série Ensaios Transversais, 2002.

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