O unico clube rapaz e'o Botafogo. Explica-se: foi o unico clube que nasceu rapaz. Os outros, pelo menos, procuraram nascer homens. Ja'o Botafogo teve a preocupacao de ser o oposto do Fluminense , que era o homem-feito. O Fluminense foi um clube que nao nasceu assim , de um repente. Com o time formado, com tudo o que seria ele, demorou um ano. Surgiu depois de muito estudado, de muito pensado. O Botafogo, pelo contrario, so precisou de uma apresentacao ao Fluminense para virar clube. E'um detalhe que nao deve ser esquecido por quem tentar compreender o Botafogo. Os rapazes que nao pensavam em formar clube algum foram levados ao campo do Fluminense para serem do Fluminense. Diante do Fluminense, eles se sentiram , logo e logo, Botafogo.

Nao se tratava so' dos bigodes dos jogadores do Fluminense. O Fluminense tambem tinha bigodes. Havia, entre os rapazes do Colegio Abilio e o Fluminense, uma distancia de idade. Essa idade nao se contava apenas pelos anos do Fluminense, dois, ou dos jogadores do Fluminense, alguns ainda rapazes. Era a concepcao da vida, vamos dizer. Os rapazes do Fluminense tratavam logo de se adaptar, de usar bigodes imaginarios. Os rapazes do BOTAFOGO queriam tambem ser homens, mas continuando rapazes. Dai' se sentirem quase imberbes diante dos homens-feitos do Fluminense. A reacao deles, forte , e renovada sempre pela rivalidade que foi a primeira do futebol carioca, tornou-os mais rapazes ainda, marcou-os eternamente rapazes.

Pouco importava que um Flavio Ramos, dezessete anos e primeiro Presidente do BOTAFOGO, se sentisse rapaz demais para ser presidente do mesmo BOTAFOGO. O homem-feito, procurado e encontrado, que foi ser Presidente do BOTAFOGO, nao mudou o que ja' era imutavel. Ser do BOTAFOGO era ser rapaz. A gente ve^ velhos Botafoguenses, curvados pelos anos, e ate' estranha um pouco. Serao ainda Botafoguenses? Mexam com o BOTAFOGO e verao. Os velhos endireitam logo a espinha , estufam o peito, reacendem a chama do olhar e estao prontos. E nao e'dificil mexer com o BOTAFOGO. Nao ha' clube de mais sensibilidade `a flor da pele, com mais orgulho de Grande de Espanha que o BOTAFOGO. Eis porque ele esta'sempre disposto a topar paradas, a se meter em encrencas, a arriscar ate' a propria vida por uma coisinha.

Nada que o atinja e mesmo que nao o atinga, mas que ele julgue que foi para atingi-lo, e'coisinha para ele. Ele devia ter nascido em outra epoca. E' a unica flor retardataria de capa-e-espada que surgiu depois dos 1900. Trata-se mais de um gascao, de um D'Artagnan, sempre pronto a desembainhar a espada. Ouve muito mais a voz do coracao do que a da cabeca. Qual era o clube capaz de largar uma Liga, sem outra Liga para ir, por causa da suspensao de um jogador? Aconteceu isso em 1911, justamente no ano em que o fluminense preferiu perder um time a deixar de ser o que era, isto e', o fluminense. O Botafogo fez o contrario, para continuar mais Botafogo do que nunca.

O que o fluminense fez , so'o fluminense faria. Mas tambem so' o Botafogo arriscaria tudo por um jogador. NAo se tratava da falta que esse jogador poderia fazer ao time, embora ele se chamasse Abelardo De Lamare. E ai'temos uma amostra do d'artagnanismo do Botafogo. Um por todos e todos por um. Abelardo De Lamare era um deles, era eles tambem, era o Botafogo. Eles nao se separavam , nao se distinguiam, fundindo-se no Botafogo. Assim o bofetao de Abelardo De Lamare em Gabriel de Caravlho nao foi o bofetao de um jogador noutro jogador. Foi o bofetao de um clube. Todos assumiram a mesma responsabilidade e se recusaram a aceitar a punicao de um so'. O Campeao de 1910 abandonou o campeonato e ficou um ano jogando na pedreira.

E aquele gesto , que seria de indisciplina, serviu para mostrar um dos mais belos tracos do Botafogo. Saindo da Liga o Botafogo podia perder todos os jogadores. Era o time Campeao de 1910, justamente o que tinha realizado uma revolucao no futebol carioca. Ate' 1910 os jogadores usavam bigodes. Mesmo os jogadores sem bigodes eram como se os tivessem. O Botafogo foi campeao com um time rapaz, com um time que tinha vindo do Botafogo mirim, o Carioca, viveiro do Glorioso. E ai' os outros clubes trataram de fazer o mesmo. O futebol que, para se dar ao respeito, tinha de nascer homem-feito, ja' podia dar-se ao luxo de ser jovem, de ser rapaz. E esta foi uma obra do Botafogo.

Qual era o clube que nao quereria os jogadores do Botafogo? O Botafogo, porem , nao perdeu um jogador. Todos ficaram juntos jogando na pedreira, que era um campo do Morro da Viuva. Era o que se chamava de um campeonato de Liga barbante. OS jornais nao tomavam conhecimento dele. Assim os jogos se realizavam, por assim dizer, anonimamente. E la' estavam os craques Campeos de 1910, o Glorioso em carne e osso, jogando com os clubes da pedreira como se esse fossem fluminenses. Com o mesmo entusiasmo, com a dedicacao, com o mesmo Botafoguismo, palavra que significa o mesmo que quixotismo. Eram uns Dom-Quixotes os jogadores do Botafogo.

Ou eram simplesmente rapazes. Continuavam a ser rapazes, levados pelos impulsos generosos da mocidade. Cometiam erros: no erro e no acerto tinham o mesmo elan. Podiam reconhecer o erro, mas nao voltavam atras. Era o tal orgulho de Grande de Espanha, identico na riqueza e na pobreza. Como saira sozinho de uma Liga, mais tarde seria o unico a ficar com uma Liga em nome de um amadorismo que nao existia. Por isso muita gente nao entendeu o Botafogo. E' que se queria julgar o Botafogo pelos padroes normais. Como se ele fosse um clube igual aos outros. Entao o Botafogo nao via que estava arriscando a propria vida?

O que decidiria qualquer outro clube a mudar de rumo tornou ainda mais irredutivel o Botafogo. Para ele era uma questao de honra e ninguem o podia demover. Ficou com trezentos socios, e cada socio que saia unia mais o Botafogo. E' que ficavam e ficariam os verdadeiroas Botafogo, os Botafogos para a vida e para a morte. Ai' mesmo e' que nao acabavam com o Botafogo, com aquela legiao de rapazes de todas as idades, alguns que tinham visto nascer o Clube, mas rapazes ainda e mais rapazes do que nunca, porque nem o rolar dos anos havia tirado deles o ardor da mocidade.

Bastaria, porem , conhecer as origens do Botafogo para compreende-lo , admira-lo, mesmo discordando dele. Realmente chega a comover um encontro assim com D'Artagnan no seculo XX. NAo e' possivel, dirao uns, e eis o Botafogo. Ainda e' um personagem de romance de capa-e-espada, com nocoes de honra dos velhos tempos, ofendendo-se por um nada. E se a gente quiser ir mais longe, deixar os Juizes da Franca e os Grandes de Espanha , pode chegar ate' as Cruzadas para descobrir Botafoguenses.

Noutros tempos, ele foi popular. Mas a popularidade, entao, era o nome que se dava a um clube com centenas de socios e alguns milhares de torcedores. O grande campo era o do fluminense e la' cabiam , estourando, 5 mil pessoas. O Botafogo tem mais gente do que a gente pensa. MAS SER BOTAFOGO E' ESCOLHER UM DESTINO E DEDICAR-SE A ELE. NAO SE PODE SER BOTAFOGO COMO SE E' OUTRO CLUBE. E' PRECISO SER DE CORPO E ALMA. E e' preciso, antes de ser Botafogo, ser rapaz, mesmo velho. Ser um Dom Quixote, um D'Artagnan.

Texto de Mario Filho "O Clube da Capa-e-Espada" In "O Sapo de Arubinha - Os anos de sonho do futebol brasileiro" , Cia. das Letras 1994, pp. 74-77.