O Estado de São Paulo, 25 de fevereiro de 1999

A sociedade do lazer e seu profeta

Gilberto de Melo Kujawski

A entrevista do professor italiano Domenico De Masi no Roda Viva, da TV Cultura, em janeiro, foi um acontecimento raro, um sucesso total de audiência. Foram tantos os pedidos que, na segunda-feira seguinte, o programa foi reprisado na integra. As idéias novas lançadas pelo entrevistado a propósito do tempo livre na sociedade pós-industrial, sua constante fluência e jovialidade na comunicação, sempre em tom ameno e coloquial, cativaram não só os telespectadores como o grupo de entrevistadores, que se mostrou excepcionalmente feliz na formulação das perguntas. Entretanto, por razes insodáveis, a imprensa escrita manteve-se omissa. Nenhuma palavra, nenhum registro daquele acontecimento cultural que magnetizou oPaís inteiro na Tv. Entenda quem puder.

De Masi, professor de Sociologia do Trabalho na Universidade de Roma, consultor de grandes corporações, como a IBM e a Fiat, vê o século 21 dominado não pelo problema do trabalho, e sim pela temática da organização do ócio (entendido não como ''fazer nada", mas como tempo livre). A sociedade pós-industrial é gerada pela própria sociedade industrial, na medida em que esta aperfeiçoa e difunde seus programas de automatização e informatização do trabalho. A sociedade pós-industrial, esse fenômeno que já começou a existir, troca a produção de bens materiais pela produção de serviços, de informação e de conhecimento. Hoje em dia - diz ele -, o país que conta com muitas indústrias está atrasado. A linha de montagem foi superada. A economia sadia e avançada, segundo De Masi, não é unilateral, e sim diversificada, combinando a função agrícola e a industrial com o lazer. As condições para a construção da sociedade do lazer são: a grande arte, a grande literatura e a grande universidade. O Brasil conta de sobra com os dois primeiros fatores, mas falha no desenvolvimento da universidade na dedicação intensiva e extensiva ao estudo e à pesquisa científica.

O maior inimigo da criatividade organizada que caracteriza o mundo pós-industrial é o burocrata, o antípoda das inovações e do espírito criador. Os burocratas são "sádicos", só enxergam os limites e nunca as oportunidades; são "corruptos", tentam corromper os clientes com a exploração das dificuldades, dos prazos, etc. Atualmente, qualquer executivo pode terminar seu trabalho diário em cinco horas; mas o executivo representa uma comédia; faz de conta ter trabalho em demasia, inventa horas extras, para não ser capturado pela família e pela mulher, a qual, em geral, despreza. Propõe um sem-número de "reuniões sem finalidade e de regulamentos "para os outros". E preciso começar a sanear o regulamento das empresas, eliminando, um a um, todos os preceitos sem razão de ser.

A imaginação criadora é importante, mas não basta; tem de se completar pela realização. Fantasia + realização é a proposta dos grupos de trabalho estudados em seu livro A Emoçâo e a Regra (José Olympio Ed.). Tais grupos se constituíram na Europa, entre 1850 e 1950. E difícil deparar com a genialidade individual, mas é viável criar grupos que somem fantasia com realização. Um desses grupos foi a Escola de Biologia de Cambridge, que descobriu o DNA. Os cientistas produziram diversos desenhos da possível estrutura do DNA, a priori, sem base experimental. Na hora de testar aqueles desenhos surgiu a questão: qual deles? A resposta foi: o mais belo. Testou-se o desenho mais formoso e elegante. E não é que deu certo? O esquema do DNA era aquele mesmo. O episódio é importante para destacar a importância do espírito lúdico, do prazer de jogar, sem o qual não se constrói a ciência.

Ortega y Gasset, há mais de 70 anos,já acentuava a influência decisiva do jogo em qualquer tipo de criação: "Para advertência exemplar dos homens existe o feito gigantesco de que a civilização que obteve maior domínio material, prático, sobre o cosmos - a européia - foi também a civilização da matemática mais irreal e abstrusa. O mundo antigo só produziu uma técnica rudimentar e embotada - a meu juízo, uma das causas mais concretas de sua ruína - porque não cultivou a matemática e o pensamento com suficiente alegria desportiva. Digam-me o que seria de nossa técnica sem a geometria analítica de Descartes e o calcul des infiniment petits, de Leibniz! Em trabalho próximo a publicar-se - Marta e Maria ou Trabalho e Desporto -, você verá como as coisas chamadas 'sérias' e úteis, foram, na História, míseras decantações e como que migalhas do puro desportismo" (Ortega y Gasset, Carta a um Jovem Argentino que Estuda Filosofia, O.C., III, 350).

De Masi reconhece no desemprego crescente e mundial um perigo sério. Mas entende que a desocupação, que surge como uma ameaça, se revela logo uma oportunidade de reorganizar o trabalho e a sociedade. Para ele, aquelas três etapas da vida que andam separadas, o estudo, o trabalho e o tempo livre, tendem a integrar-se desde já. O tempo livre - diz De Masi - é o tempo do luxo; não da ostentação de riquezas ornamentais, mas da recuperação de alguns luxos hoje perdidos, como o tempo, o espaço, o silêncio, a segurança. Por isso, respondendo a um dos jornalistas, declara De Masi que o principal valor que sustenta seu trabalho é a estética. A estética - afirma - é a disciplina que dá sentido às coisas, unindo o fragmentário numa realidade inteiriça.

Precioso subsídio para as teses do pensador italiano seria a noção do tempo hispânico, forjada por Gilberto Freyre. o mundo desenvolvido, diz Freyre, está dominado pela tensão abominável do tempo anglo-saxônico, o tempo planificado segundo objetivos pragmáticos de utilidade e ganho material, um tempo que nunca é "nosso", de cada um de nós. mas da empresa. do capital e do trabalho, da sociedade, enfim. Já o tempo hispânico (comum a Espanha, Portugal e seus descendentes) é o tempo pessoal, que considero próprio, "meu". Numa palavra, é o tempo do que interessa por si mesmo, e não por outra coisa. Gilberto fala do cafezinho, do charuto fumado, lentamente, do tempo da cervejaria ou da confeitaria, da conversa gratuita. dos sorvos de vinho do porto das guloseimas, etc. (G. Freyre, O Brasileiro entre os Outros Hispanos).

Espanha e Portugal, Brasil e Itália são países que chegaram por último ao festival do desenvolvimento. Talvez porque o pensamento espanhol. a sociologia brasileira e o gênio italiano estejam reservados para brilhar na temporalidade do ócio, do tempo livre, no mundo pós-industrial.

( Gilberto de Melo Kujawski é escritor  e jornalista
   O Estado de São Paulo, 25 fev 99)